A Isca

por Monique às 12:54 PM 6 comentários

Foi aterrorizante estar ali; naquela praça no centro da cidade onde todas as flores estavam desbotadas, onde o silêncio doía e o vento cortava. Mas o pior, estava por vir.
Vi pessoas descascando igualzinho a papéis de parede envelhecidos. Revelando as imperfeições que escondiam. Tudo exposto. Uma delas tentava colar as partes que se desprendiam da testa, outro gritava, alguns xingavam, e todos tinham no rosto a mesma expressão de desespero.
Os bancos estavam cheios, as pessoas esforçavam-se para não se tocarem, percebi que não tinham escolha senão sentar e tentar entender, e tentar impedir, e tentar aceitar. Algumas resistiam bravamente caladas - talvez estas já tivessem aceitado.
Percebi então uma garotinha que tremia e escondia o rosto nas mãos, o vestido estava rasgado e como tudo naquele lugar estava desbotado, cinza, descascando. Senti um impulso repentino de abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem. Quis fugir levando-a nos braços. Ela era diferente, suas imperfeições eram perfeitas. Havia cor no cinza do corpo dela, eu sei.
Tentei me aproximar, mas não pude. Meus pés colaram no chão. Talvez fosse tarde demais. Quando dei por mim havia um garoto tocando minha mão esquerda. Branco e frio como a morte. Era diferente também, tinha passos firmes e nunca sentaria. Olhar vazio. Ele sorriu um sorriso triste e eu o abracei. Certamente era tarde demais.
Senti meu corpo mudar, a imagem provavelmente foi semelhante à morte de uma lula gigante. Perdendo a cor, perdendo a vida. Fisgada por uma falsa impressão.


Monique.

Que seja pleno o que será.

por Monique às 3:42 PM 6 comentários

Tenho inúmeras manias esquisitas, entre elas está a de imaginar rostos jovens (ou nem tanto) envelhecidos. Não sei quando foi que a adquiri, mas desde então não consigo livrar-me dela.
Um dia, me olhando no espelho imaginei-me daqui a trinta anos. Realizada pessoalmente e profissionalmente; inseparável de meus instrumentos musicais, alguns livros publicados, situação financeira estável, família feliz. Rugas marcavam meu rosto, mas eu estava orgulhosa de cada uma delas.
Um vento frio e agradável entrou pela janela da sala, onde eu conversava animada com o homem que eu amaria até o fim da vida. Reciprocamente. E se o tempo me permitisse, provavelmente morreria amando um homem careca – engraçado pensar nele assim.
A lareira estava acesa, a mesa lateral acomodava diversos porta-retratos que continham fotos de momentos felizes, em alguns deles eu estivera no Japão. Meu eu adulto vestia algo confortável e divertido, tinha nas mãos quatro pares de meias recém passadas, prontas para serem imediatamente calçadas em um dia frio de outono.
Ao olhar pela janela vi minha irmã e meus sobrinhos, sorriam e acenavam ao passarem pelo portão. Meus dois filhos correram ao encontro deles, os copiei, e nos envolvemos em um abraço coletivo. Pouco depois, meu melhor amigo apareceu por lá. Seu cabelo estava diferente, mais curto, menos escuro, mas naquele momento eu soube – seu olhar seria o mesmo para sempre.
Ao observar o exterior de minha casa, descobri com alegria que ela era amarela. Havia um carro de modelo antigo na garagem, o jardim estava bem cuidado, e os portões eram fantásticos, cheios de curvas e desenhos. Folhas secas caídas no chão atribuíam à sensação gostosa de pisá-las e ouvir os sons. Ao fazer isso, a fantasia quebrou-se com as folhas. Pela metade, interrompida.
A imagem no espelho voltou a entrar em foco, e lá estava eu – trinta anos antes, nenhuma ruga, com o futuro nas mãos.

É fato, todos os que sobreviverem ficarão velhos. Os jovens envelhecem, os velhos continuam envelhecendo, e até as crianças têm rugas invisíveis no rosto – precoces em quase tudo. O mundo está amarelando, há páginas quase ilegíveis e cabe a nós conservá-lo.
Sei que sentirei falta do que ficará na lembrança. Então, que a vida se renove todo dia. Que o futuro seja pleno como nunca.

Monique.

por Monique às 9:24 PM 10 comentários
Eu vi uma mulher morta. É verdade, as pessoas morrem o tempo todo, mas aquela estava caída perto demais. Ela parecia uma boneca de pano com olhos injetados, braços contorcidos e cabelos enrolados. Deveria estar sendo embalada, mas acabara de ser descartada - para sempre.

Monique...

Da Janela

por Monique às 3:44 PM 11 comentários

Isabel acordou cedo demais em pleno sábado, não conseguia dormir. Ela adorava pássaros e suas canções, mas naquele dia eles a estavam enlouquecendo. Decidiu abrir a janela e caçá-los. Encontrou um ou dois empoleirados em um galho esguio da árvore do vizinho. O vento soprou, a árvore balançou e os passarinhos voaram. Ela percebeu então que aquele era o mesmo galho que cutucava sua janela quando ventava, a criança dentro dela perdeu o medo de monstros e sorriu. Era só a natureza.
A garota ficou ali parada até que o céu se transformasse de um cinza escuro em um azul celeste. A luz invadiu seus olhos, ela sentiu-se subitamente cega e decidiu afastar-se. Fechou as cortinas, mas manteve a janela aberta. Era assim que ela gostava.
Foi então que escutou o som. Era uma harmonia macia que parecia ecoar em alto-falantes espalhados pela casa, deixou-se contagiar, deitou na cama e seus pensamentos voaram... Voaram... E voaram.
Pouco depois se levantou e olhou pela janela, no lado oposto da rua havia um garoto. Dentro de uma casa amarela, atrás de outra janela, ele tocava gaita de boca. Na verdade, ele sabia apenas quatro notas, mas isso não era importante. A harmonia cessou. Ela entristeceu. O garoto sem nome surpreendeu-se ao vê-la e corou. Ela não percebeu. Simultaneamente os dois fecharam as janelas.
Naquele dia multicolor algo se agitava dentro dela - borboletas no estômago.
Um imã invisível a atraiu para a rua banhada de sol e entulhada de carros e fumaça. Ela abriu a porta da frente, desceu os três degraus que a levavam ao jardim saltitando. Olhou em volta, tornou a ouvir a harmonia. O magnetismo enfraqueceu, desistiu da rua e deitou-se na grama, viu as nuvens mudarem de forma - uma gaita, notas musicais, uma janela e um olho azul que piscava. Por fim, ela sorriu com serenidade e as borboletas voaram.


Monique.
 

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