Monstruosidades

por Monique às 11:30 AM 3 comentários

Ele despertou minha curiosidade, e fazia tanto tempo que estava adormecida que decidi deixá-la viver um pouco na realidade.
Era estranho porque ele tinha aquele sorriso que parecia o resultado de uma adição dos sorrisos que amo tanto. E aqueles olhos que mudavam de cor e me davam arrepios, e aquelas mãos que se encaixavam tão perfeitamente nas minhas, que eu me senti completa por alguns instantes.
Enquanto olhava dentro de seus olhos, quase acreditei que ele tivesse transferido seus próprios sentimentos para dentro de mim.
Ele tinha aquele poço frio, azul e fundo camuflado no rosto, e ele estava prestes a transbordar com todo o seu medo e amargura. Por algum motivo senti que isso o deixaria feliz, pois ele sobrevivia com os sentimentos de outro alguém.
Mas ele sentiu medo quando olhou dentro dos meus olhos e então decidiu que não os olharia mais. Eu ainda não havia entendido esse medo que as pessoas tinham de mim e do meu olhar... Pois ele não queria machucar ninguém. Talvez fosse intimidador. E é mesmo verdade que ele conseguia descobrir coisas sobre as pessoas que nem elas mesmas sabiam. E também é verdade que ele podia sustentar o mais intenso dos olhares sem vacilar, mas é verdade também que poderia revelar quase tudo sobre mim caso algum dia encontrasse outro olhar atento.
Talvez eu descubra uma forma de não afastar as pessoas, e assim talvez eu aprenda a manter os olhos entreabertos quando eles não estiverem fechados.
Eu continuarei assim, convivendo com o medo dos outros como se fossem os meus próprios, porque eu sou o pior dos monstros, e não tenho outros para temer.


Monique.

A precipitação dos sonhos.

por Monique às 10:18 PM 5 comentários

Era horário de verão, por isso o sol parecera atrasar seus próprios sonhos. Os relógios marcavam dezenove horas. Isabel ainda estava sentada na areia da praia, ninguém conseguia tirá-la de lá.
Ela ainda era uma garotinha que antecipava os sonhos atrasados do sol. E só queria ficar ali sentada contemplado o infinito, construindo seus castelos de muros altos e rios infestados de jacarés – para os outros eram apenas montes de areia, e conchas - e ela sabia que amanhã já teriam sido derrubados e destruídos por causas naturais ou nem tão naturais assim, mas ela reconstruiria tudo alegremente porque era sua fortaleza.
Queria um guarda-sol imenso para ofuscar a claridade e poupar o tempo que gastava com protetor solar, queria também um moletom dez vezes maior que o seu tamanho para aquecer-se e sentir-se segura, mas queria, mais do que tudo, que a deixassem ser quem era.
Gostaria que não a impedissem de apanhar areia e comer, que a deixassem correr em círculos até o mar, que não a chamassem de assassina por naufragar barquinhos de papel juntamente com sua tripulação invisível, que o vendedor de picolés compreendesse seu desgosto por escolhas e a deixasse sortear algum sabor de olhos fechados.
Queria que não a condenassem por usar tênis na praia de vez em quando e não a olhassem estranho quando decidisse esconder-se em algum buraco cavado na areia, que acreditassem quando ela dissesse que nuvens podem ter a forma que desejamos e que há muitas escadas pendendo do céu.
Mas, ninguém ali poderia compreender ou acreditar, pois viviam dizendo que estavam velhos demais para isso, tudo era do jeito que era e não podia ser transformado. Já para ela, tudo era fascinante, surpreendente, saboroso; e não importava o quão amargo fosse, nem de que forma as almas antigas viam o que ela enxergava.
Achavam engraçado o jeito como ela balançava sobre os calcanhares e o modo como soprava a franja para longe dos olhos. Ficavam todos impressionados com o prodígio talento para discursos quando ela abria a boca, mas e daí? Ela só desejava que seus castelos de areia fossem mais significativos e importantes do que suas mãos sujas.

Monique.

Kriptonita

por Monique às 8:34 PM 6 comentários

Incansavelmente estive tentando, mas as coisas pareciam proceder como em um pesadelo. Eu estava caindo em queda livre, o chão estava próximo, queria gritar, mas minha boca tornara-se incapaz de produzir sons. E era sempre tudo igual...
Então um dia, a projeção foi desligada, as luzes foram acesas e o despertador tocou. O encanto foi quebrado, e eu cansei de ser muda.
Ao te encontrar com os olhos finalmente abertos, a dor foi insuportável, você era para mim como a kriptonita era para o super-homem: nocivo, letal, e verde.
A distância fora estabelecida, os laços haviam sido desfeitos há muito tempo.
Eu sempre voltei a rir e achar a vida bela, a dançar na chuva, e correr com a boca aberta. É claro que ainda tentava engolir o mundo, e sem medo de engasgar e perder a voz outra vez. É óbvio que ainda haviam kriptonitas de tocaia esperando por mim, mas agora, eu estava preparada para enfrentá-las. É justo que eu não seja imortal, e decida morrer algum dia.


Monique.

Fantasma Invisível e Tolo

por Monique às 1:15 PM 6 comentários

O mundo girava, e ela podia sentir, o chão se abria logo abaixo, mas não era algo que importasse, ela nem ao menos necessitava do chão, andava nas nuvens e morava na lua. Até que um dia o vento fez seu equilíbrio desequilibrar-se, logo o vento que ela venerava. Caiu em uma nuvem muito baixa, sentiu o perigo se aproximar, estava fraca, vulnerável, ferida, quebrada, desequilibrada, afetada. Derrotada? Jamais.
Ela sentiu a brisa tocar-lhe a face, os ventos pareciam mudar de direção. Estava assustada. Precisava fugir dali, para qualquer lugar. Sozinha. Com seus pensamentos interrompidos.
Ela era invisível, e nem sequer precisava de capas mágicas ou de esconderijos. Era um fantasma pairando sobre o céu cinzento de algum mundo perdido. Ela olhava ao seu redor, e lá estavam elas, as pessoas que sorriam, para ela? Mas é claro que não, ela era só um fantasma invisível, e tolo.

Monique.

Observando das nuvens.

por Monique às 5:45 PM 5 comentários
Talvez seja culpa do amarelo que ele veste, ou do jeito como ele (des)penteia os cabelos negros. Talvez seja culpa do sorriso que ele disfarça quando me vê. Ou talvez a culpa seja minha, e eu esteja sendo injusta.
Eu me lembro daquele dia, era primavera, havia um campo de margaridas. Também um ipê amarelo (embora eu goste mais dos roxos) que sustentava um balanço de corda velho, tão velho que é como se o tivessem colocado ali quando a árvore ainda era apenas uma mudinha, encantadoramente frágil.
Como se o balanço fosse uma miniatura que foi crescendo juntamente com os galhos até então finos e levemente tortuosos do ipê. Agora eles eram parte um do outro, eram um só. Encantadoramente sólidos. Assim como nós dois éramos rolando pelo campo de margaridas, ah sim! Elas foram esmagadas, estavam compactadas dentro de nós dois. Elas nem eram reais mesmo. Não havia nada dentro de nós para preencher o vazio, talvez ainda houvesse a avidez de quem quer muito por não ter nada e que as compactava para que pudesse caber um pouco mais, um pouco mais de quê? De nada. Eu estava sonhando acordada um sonho que não era meu, era nosso.
Mas afinal, de que são feitos os sonhos? Tenho certeza de que há muito amarelo nos meus.
Às vezes sinto vontade de morrer, e tudo porque tenho a esperança de poder vê-lo de algum lugar. Sentada nas nuvens, olhando para a Terra que parece tão pequena agora... Você estaria lá? Com flores de plástico, olhares murchos, suspiros melancólicos, cicatrizes nos lábios que não irão cicatrizar? Eu espero que não. Flores de plástico não morrem, mas jamais terão o mesmo encanto daquelas que tiveram a ousadia/sorte/missão de viver pelos outros, para enfeitar a vida dos outros, e quanto à vida delas?
Às vezes tenho vontade de morrer, mas só às vezes, logo passa, sinto-me idiota e quero viver. Mesmo que seja só para enfeitar a vida dos outros. E quanto a minha? Quem irá enfeitar?
Algumas vezes parece que os sonhos não bastam, e é preciso acordar, acordar para viver da realidade, que é mais amarga e dura, mais verdadeira e áspera, mas que no fundo é o que faz dos sonhos tão meus, tão seus, tão nossos.


Monique.

Sonhos de Plátano

por Monique às 10:21 PM 11 comentários

“Para o resto de nossos dias”, foi o que sussurrei de olhos fechados e ainda embaixo das cobertas. Algo estava acontecendo, era estranho me imaginar daquele jeito, mesmo assim lá estava eu eufórica com um vestido longo e branco – ou talvez fosse azul claro e eu estivesse tentando enganar a mim mesma – haviam fitas de cetim azuis e brancas que enroscavam-se por todo o comprimento de meu cabelo. Nada de véu. Uma gargantilha de botões azuis e brancos alternadamente enfeitavam meu pescoço, os sapatos escondiam-se por debaixo de tão longo vestido, mas tenho quase certeza de que eram os mais confortáveis do mundo, pois sentia como se estivesse pisando nas nuvens, como se fosse tão leve que elas pudessem suportar meu peso facilmente sem perder suas belas formas.
Olhando ao meu redor eu pude perceber, era outono. Muitas árvores cercavam o lugar, seus galhos eram todos retorcidos e sem folhas, todos exceto um, que parecia revoltar-se contra sua própria natureza, e possuía uma única folha (de plátano) que permanecia insistente e frágil no seu topo. Olhei em frente e lá estava o caminho mais curto para a minha felicidade, nele haviam bolinhas de gude por toda sua extensão iluminando a passagem, eram roxas, azuis, e transparentes. Brilhavam muito.
Eu estava em pé, segurando um buquê de rosas azuis – talvez você nunca entenda o porquê de serem tão azuis assim - com as pernas bambas só de pensar quantos olhares estariam voltados em minha direção no momento em que a música começasse a tocar. E se eu caísse? E se meu vestido rasgasse? E se eu me engasgasse com a saliva e não conseguisse falar?
Formando um triângulo haviam hastes de madeira enfeitadas por espirais de orquídeas. Nas cadeiras, seda branca e pálida. Por todo o chão grama verde. O vento brincava com as folhas cinzas caídas elegantemente no verde macio, logo ao lado havia um riacho que corria lento e em sentido anti-horário, talvez houvesse perdido algo no caminho e desejasse voltar.
Ao som da primeira nota, o meu primeiro passo solitário e irrepreensível rumo a algum lugar que só eu sabia onde ficava. Estava sorrindo de um jeito que nunca havia sorrido antes, o óbvio ululante de felicidade que eu deixava transparecer na minha respiração não me incomodava, nem um pouco.
Outro passo, e outro, e mais outro, até aqui tudo bem. Segui em frente, e em poucos segundos lá estava eu, em frente ao altar, onde alguém dizia alguma coisa pausadamente, mas eu não estava prestando atenção. Escutei meu nome, e respondi apenas “eu aceito”, era uma parte da minha verdade que eu estava entregando para você, quem era você? Eu não sei. Talvez eu nunca descubra, já que nesse instante um raio vindo do céu atingiu o chão desordenado, um abismo se abriu lentamente a minha frente, caí dentro dele. Sim, eu caí. E continuava caindo sem parar e agora nem mesmo eu sabia onde iria chegar, o escuro e o medo desmancharam meu vestido branco – talvez azul – desfazendo o final encantador onde as pessoas estariam soprando bolhas de sabão em minha direção, e em direção a aquele que estaria segurando minha mão rumo a eternidade, só para escutar o “ploft” que fazem os sonhos condensados desmanchando-se no ar. Estava agora em uma cama estranha com uma camisola nem azul, nem branca, vermelho sangue mesmo.
Sentei desesperada, eu precisava voltar ao sonho e ver o seu rosto, te ouvir responder “eu aceito”, te dar um beijo e acordar feliz. Deitei outra vez, fechei os olhos, tentei voltar pro mesmo sonho. Fracassei, desisti. Abandonei meus sonhos interrompidos, talvez eu fosse prisioneira deles, e você tivesse ficado preso por lá também, acordei para o mundo real.
Segui até o jardim, e olhando ao meu redor eu pude perceber, era outono. Muitas árvores cercavam o lugar, seus galhos eram todos retorcidos e sem folhas, todos exceto um, que parecia revoltar-se contra sua própria natureza, e possuía uma única folha (de plátano) que permanecia insistente e frágil no seu topo, o vento soprou forte, a folha caiu em cima da minha cabeça, o vento soprou outra vez, ouvi sua voz dizer quase em um sussurro “eu aceito”.

Monique.

Janelas do Mundo

por Monique às 1:11 AM 2 comentários


O relógio marcava 16h – o momento do dia que mais me agrada. Abri as janelas do quarto, sentei-me na cama, apanhei a caneta e o papel que se encontravam ao alcance das mãos. As idéias borbulhavam em minha cabeça, como lava de vulcão inativo durante anos prestes a entrar em erupção: eu queria escrever. Fiz um risco no papel, havia um bloqueio deveras grande em minha mente que impedia qualquer idéia de manifestar-se: eu não entendia.
Havia o vento, a luz solar, o toque macio do cobertor em minhas pernas. Havia também os meus pôsteres favoritos colados na parede, meu violão apoiado na cama, os livros sobre a cômoda, meu som favorito tocando ao fundo, mas faltava alguma coisa – pausa para outro risco no papel . Eu não entendia.
Soltei o que tinha em mãos e caminhei em direção à janela, coloquei a cabeça para fora e observei cada detalhe até onde meus olhos fossem capazes de alcançar. Mas aquilo era pouco, muito pouco para a curiosidade infindável de meus olhos vagos. Eu queria ver mais. Queria descobrir o que se escondia atrás da montanha tão verde, das nuvens tão brancas, do asfalto tão negro, dos olhares tão cinzas e sorrisos tão amarelados. Poderiam sorrisos enferrujar feito prego que pregou o dedo de alguém e deu-lhe de brinde o tétano? Acho que não, talvez tenham apenas envelhecido feito papel antigo.
Desviei o olhar da multidão que caminhava apressada, temia por eles que pudessem tropeçar nos próprios pés. Meu olhar penetrou a montanha verde e aos poucos foi notando que não era tão verde assim. Havia um pouco de marrom, provavelmente barro de área desmatada pelos mesmos sorrisos enferrujados e envelhecidos, olhares mortos e passos tortos. A humanidade era mesmo repulsiva.
Notei no topo da montanha um pouco de rosa, inibido por tanto verde, eram flores inusitadas, embora longínquas e, portanto pouco vistosas, tornavam-se belas por serem únicas e contraditórias.
Fixei meu olhar nas nuvens brancas, suas formas aguçavam minha curiosidade, nelas eu podia ver não apenas o que meu olhar permitia, mas tudo o que minha imaginação queria. E ela queria mais do que cabia no mundo imaginário. Por isso, pela janela transbordavam pipas, balões e elefantes murchos de tão apertados pelas janelas do mundo.
Quando percebi havia pulado da janela do meu apartamento. Não fosse por um hipopótamo de nuvem branca estaria agora espatifada no asfalta negro. Um hipopótamo de nuvem branca voador que voava cada vez mais alto. Roubei um pedaço de seu imenso dorso e enfiei na boca, cuspi, eca! Não tinha gosto de algodão doce, nem de jujubas azuis como meu eu infantil imaginava. Tinha gosto de lágrima, um pouco salgado, talvez amargo, mas nem de longe doce.


Monique Burigo Marin
 

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