Passara muito tempo desde a última vez em que senti o gosto, e não falo de um gosto qualquer, nem desse tipo de gosto imaginável que você possa ter imaginado. Nada disso. Falo de um gosto raro. Raríssimo. Único. Gosto que eu descobri cedo, não cedo de cedo demais, cedo de cedo o bastante para que eu o tenha descoberto antes. Logo eu, que nem estava procurando.
Por acaso, naquele dia decidi brincar na rua. Deixei quarto escuro, livros e amigos inanimados. Ouvi as preces dos meus pais e fui ser uma criança normal. Saí porta afora dizendo que brincaria, faria amigos e seria divertido. Sabendo da mentira, sabendo que só estava fazendo isso para alegrá-los, e para dizer a mim mesma que tentei. No entanto, só aconteceu na imaginação. Crianças normais não gostam de crianças sérias e monótonas, crianças normais não deixam crianças assim brincarem na rua delas.
Assim que pisei na rua, todos congelaram os olhos em mim. Normal a normal, do primeiro ao quarto, cada qual com seu próprio par de olhos azul-céticos. Azuis de todos os tons. Escondi os olhos meio amargos atrás do capuz e apertei fortemente as mangas do moletom:
- Posso brincar?
A voz saiu torturada, sem emoção. A interrogação ficou suspensa no nó de forca de uma corda frágil durante dez batidas do meu coração acelerado. Tempo necessário para que alguém processasse minha loucura:
- Não.
Tirei o capuz, afrouxei o aperto nas mangas, ergui a mão direita e mostrei aquele dedo para os abomináveis seres de olhos azuis. Todos congelaram outra vez, por inteiro. Dei as costas e voltei para casa, torcendo para que o sol derretesse todos eles. Normal a normal, do primeiro ao quarto. Celeste, marinho, anil e petróleo.
Entrei em casa de cabeça erguida. Meu pai entusiasmou-se ao ver-me:
- Então, pequena, como foi?
- Legal.
Antes de voltar para o meu refúgio escuro, forjei um sorriso raro de dentes de leite ao passar por ele. Tranquei a porta, deitei na cama, puxei o cobertor até a cabeça, apertei as pálpebras com força e torci para dormir e acordar em outro lugar. Não sei dizer o quanto isso durou; talvez o tempo de uma infância.
Monique Burigo Marin
Ilustração: Burton Saunders
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4 comentários on "O Tempo de uma Infância"
Hahah. Eu posso conviver com isso. Contento-me em continuar te admirando - e, agora, torcendo pelo seu sucesso no vestibular. Sei bem como é, passei por isso ano passado... Muito boa sorte! Não me abandone... rsrs
Qual curso?
No mais, esse texto ficou maravilhoso! Eu me leio demais em tudo o que você escreve, talvez seja essa semelhança - mesmo que vaga - que me traz aqui repetidas vezes. Parabéns!
até... ^^
fer.
Uma criança que descobriu cedo a agir com certa maturidade. Mas temo que essa maturidade possa esmagá-la futuramente. Pois uma criança, por mais que não seguisse o padrão de todas as outras crianças, deveria encontrar, de sua própria natureza, coisas e momentos para se divertir e sorrir.
Puxa a coberta até a sua cabeça e fecha os olhos porquê não quer estar ali, ou talvez não quisesse ser daquela maneira. Acorda e se vê na mesma cama e com o mesmo dedo que mostrou para aquelas outras crianças.
Belíssimo texto, Monique! Chegou a soar como literário.
demais, demais!
Sua autoria mesmo?
parabéns!!!
Olá, estou ainda encantada com o blog. Li muitos dos seus textos e possuem sim uma beleza apaixonante.
Sorrisos...
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